Äóìàþ, ìîæåò áóòü êòî-íèáóäü ïåðåâåäåò ïðîèçâåäåíèå, êòî âëàäååò ïîðòóãàëüñêèì ÿçûêîì è îäíîâðåìåííî ïèñàòåëüñêèì íàâûêîì... ß âîò ïûòàëñÿ ïåðåâåñòè ÷åðåç ýëåêñòðîííûé ïåðåâîä÷èê, ÷óøü ïîëó÷àåòñÿ... Äîëãàÿ ðàáîòà êîðî÷å åñëè ïåðåâîäèòü è òðåáóåò òåðïåíèÿ...
A Casa das Sete Mulheres
Cadernos de Manuela
O ano de 1835 não prometia trazer em seu rastro luminoso de co-meta todos os sortilégios, amores e desgraças que nos trouxe. Quando a décima segunda badalada do relógio da sala de nossa casa soou, cor-tando a noite fresca e estrelada como uma faca que penetra na carne tenra e macia de um animalzinho indefeso, nada no mundo pareceu se travestir de outra cor ou essência, nem os móveis da casa perderam seus contornos rígidos e pesados, nem meu pai soube dizer mais pala¬vras do que as que sempre dizia, do seu lugar à cabeceira da mesa, olhando-nos a todos nós com seus negros olhos profundos que hoje já perderam há muito o seu viço, a sua luz e a sua existência de olhos de homem do pampa gaúcho que sabiam medir a sede da terra e a chuva escondida nas nuvens. Quando o relógio cessou de soar o seu grito, a voz de meu pai se fez ouvir: "Que Deus abençoe este novo ano que a vida nos traz, e que nesta casa não falte saúde, alimento ou fé." Todos nós respondemos: "Amém", erguendo bem alto nossos copos, e nisso não houve ainda nada que pudesse alterar o curso dos acontecimentos que nos regiam tão dolentemente os dias naquele tempo. Minha mãe, em seu vestido de rendas, os cabelos presos na nuca, bonita e correta como era sempre, começou a servir a família com os quitutes da ceia, sendo seguida de perto pelas criadas, e poucos segundos depois, quando do relógio não mais se ouvia um suspiro ou lamento, tudo em nossa casa recobrou a antiga e inabalável ordem. Risos e ponches. A mesa iluminada por ricos candelabros estava farta e repleta da família: mi¬nhas duas irmãs, Antônio, meu irmão mais velho, o pai, a mãe, D. Ana, minha tia, acompanhada de seu marido e dos dois filhos barulhentos e alegres, meu tio, Bento Gonçalves, sua mulher de lindos olhos verdes, Caetana, a prima Perpétua e meus três primos mais velhos, Bento Fi¬lho, Caetano e, à minha frente, olhando-me de soslaio de quando em quando, com os mesmos pequenos olhos ardentes do pai, Joaquim, a quem eu fora prometida ainda menina, e cuja proximidade me causa¬va um leve tremor nas mãos, tremor este que eu conseguia disfarçar com galhardia, ao segurar os pesados talheres de prata que minha mãe usava nos dias de festa. Os filhos pequenos de meu tio Bento e de sua esposa estavam lá para dentro, com as negras e as amas, decerto que já dormiam, pois essas coisas de esperar o Ano não eram lá para os que ainda usavam fraldas.
Foi exatamente assim que o ano de 1835 veio pousar entre nós. Havia no ar, fazia já algum tempo, um leve murmúrio de insatisfação, umas queixas contra o Regente, umas reuniões misteriosas que ora sucediam-se no escritório de meu pai, muito escusas, ora arrancavam-no de nossa casa por longas tardes e madrugadas. Porém, como disse, naquela noite tenra e tépida de princípios de janeiro, nenhum dos pre-sentes àquela mesa parecia carregar qualquer sombra que lhe turvas¬se os olhos. Joaquim, vindo do Rio, juntamente com os irmãos, para rever a família, deitava-me longos olhares, como a dizer que eu não me esquecesse que era sua, que o tempo por ele passado para as bandas da Capital fora bom para comigo: eu via em suas retinas negras um brilho de satisfação — a prima que lhe cabia era bela, a vida era bela, éramos todos jovens, e o Rio Grande era uma terra rica, terra da qual nossas famílias eram senhoras. Distante de mim, tio Bento e meu pai riam e bebiam à solta, homenzarrões de vozes trovejantes, de alma lar¬ga. As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores, seus anseios, não reles em tamanho, pois dessa delicada fímbria feminina é que são feitas as famílias e, por conseguinte, a vida; falavam dos filhos, do ca¬lor do verão, dos partos recentes; tinham um olho posto nas conversas, os risos doces, a alegria; porém, com o outro fitavam seus homens: tudo o que lhes faltasse, de comer ou de beber, do corpo ou da alma, eram elas que proviam.
Assim seguia a noite, estrelada e calma. A prima Perpétua e minhas irmãs não se cansavam de falar em bailes, em passeios de charrete, em moços de Pelotas e de Porto Alegre. Vieram os doces dar vez às car¬nes, a ambrosia brilhava feito ouro em seu recipiente de cristal, a comilança seguia seu ritmo e seu passo, o ponche era bebido aos sorvos para espantar o calor das conversas e dos anseios. O ano de 1835 estava entre nós como uma alma, a barra de suas saias alvas acarinhava minha face como um sopro; 1835 com suas promessas e com todo o medo e a angústia de seus dias ainda sendo feitos na oficina da vida. Nenhum dos que ali estavam sequer viu o seu vulto ou ouviu sua voz de mistérios, abafada constantemente pelo ruídos dos talheres e pelos risos. Só eu, sentada em minha cadeira, ereta, mais silenciosa do que de costume, somente eu, a mais moça das mulheres daquela mesa, pude ver um pouco do que nos aguardava. A minha frente, Joaquim sorria, contava um caso do Rio de Janeiro com sua voz alegre de moço. Sob a névoa dos meus olhos, eu mal podia percebê-lo. Via, isso sim, agar¬rado ao mastro de um navio, um outro homem, mais velho, de cabelos muito loiros, não negros como os de meu primo, de olhos doces. E via as ondas, a água salgada comprimia minha garganta, afogando-me de susto. E via sangue, um mar de sangue, e o minuano começou então a soprar somente para os meus ouvidos. O vulto do novo ano, pálido e feminil, estendeu então sua mão de longos dedos. Pude ouvi-lo dizen¬do que eu fosse para a varanda, ver o céu.
— Está tão quieta, Manuela — a voz de minha irmã Rosário le¬vou embora de meus ouvidos o sopro cruel do vento de inverno.
— Não é nada — disse eu, sorrindo um riso débil.
E saí da mesa, fazendo uma mesura discreta, à qual Joaquim retri-buiu com um largo sorriso que, de tão puro, me trouxe lágrimas aos olhos. Deslizei então para a varanda, donde podia ver a noite calma, o céu estrelado e límpido que se abria sobre tudo, campo e casa, derramando no mundo uma luz mortiça e lunar. De onde estava, podia ain¬da ouvir o vozerio de todos lá dentro, e mais ainda seus risos alegres, as frases soltas e despreocupadas, não se falava em gado nem charque, pois era noite de festa. Como não percebem?, foi o que pensei com toda a força da minha alma. E, no entanto, o campo à minha frente, úmido de orvalho e florido aqui e ali, parecia ser o mesmo de todos os meus anos. E foi então que vi, para as bandas do oriente, a estrela que descia num rastro de fogo vermelho. E não era o boitatá que vinha buscar meus olhos arregalados, era sangue, sangue morno e vivo que tingia o céu do Rio Grande, sangue espesso e jovem de sonhos e de coragem. Um gosto amargo inundou minha boca e tive medo de morrer ali, pos¬tada naquela varanda, aos primeiros minutos do novo ano.
Dentro da casa, a festa prosseguia, alegre. Eram quinze pessoas em torno da mesa posta, e nenhuma delas viu o que eu vi. Foi por isso que, desde essa primeira noite, eu já sabia de tudo. A estrela de sangue confidenciou-me este terrível segredo. 1835 abria suas asas, ai de nós, ai do Rio Grande. E eu, fadada a tanto amor e a tanto sofrimento. Mas a vida tinha lá seus mistérios e suas surpresas: nenhum de nós naquela casa voltaria a ser o mesmo de antes, nem os risos nunca mais soariam tão leves e límpidos, nunca mais aquelas vozes todas reunidas na mes-ma sala, nunca mais.
"Do mesmo sonho que se vivia, também se podia morrer", ocor¬reu-me isto naquela noite, num susto, como um pássaro negro que pousa numa janela, trazendo sua inocência e seus agouros. Muitas outras vezes, nos longos anos que se seguiram, tive oportunidade de me recordar dessa estranha frase que ouvi outra vez, algum tempo mais tarde, na voz adorada de meu Giuseppe, e que repetia o que eu mesma já tinha dito ao ver uma fresta do futuro... Talvez tenha sido exatamente nessa noite que tudo começou.
Manuela.
***
1835
A Estância da Barra era de propriedade de D. Ana Joaquina da Silva Santos e do seu esposo, o senhor Paulo, que na noite de dezoito de setembro de 1835 reunira-se, juntamente com seus dois filhos, Pedro e José, às tropas do coronel Bento Gonçalves da Silva. A Estância da Barra ficava na ribeira do Arroio Grande, às margens do Camaquã, a doze léguas da Estância do Brejo, esta de propriedade de D. Antônia, irmã mais velha de Bento e D. Ana. A Estância do Brejo também situava-se às margens do Rio Camaquã e possuía um imenso laranjal, famoso entre todas as crianças da família Silva.
Na manhã do dia dezenove de setembro daquele ano, sob um céu tão azul e plácido onde, ora aqui, ora ali, finíssimas nuvens de renda branca repousavam, isto formando um conjunto tão delicado quanto o de uma rica toalha de mesa bordada por hábeis dedos e estendida so¬bre tudo, arvoredo, rios, açudes, bois e casario, a Estância da Barra estava em polvorosa. Naquela mesma tarde, chegariam para longa es¬tada as sete mulheres da família, carregadas com suas mui extensas bagagens, com as suas negras de confiança, criadas e amas-de-leite, pois junto vinham, em alegre confusão, os quatro filhos pequenos de Bento Gonçalves e Caetana, sendo que Ana Joaquina, a mais pequenina de todos, estava para completar seu primeiro ano por aqueles dias, e ain¬da mamava na teta da negra Xica.
Na manhã daquele dia, D. Antônia, tendo recebido por um pró-prio a notícia da chegada de suas parentas, e tendo tomado também conhecimento dos intentos de seu mui amado e estimado irmão, que marchava para tomar a cidade de Porto Alegre, acordou mais cedo do que de costume e foi até a estância vizinha dar as ordens necessárias a D. Rosa, a caseira, e mandar que se fizesse de um tudo de comer e de beber, pois decerto que Ana, Maria Manuela e Caetana, mais as qua¬tro moças e os pequenos, vindos de viagem desde Pelotas, tirante as angústias que por certo lhes açoitavam as almas, haveriam de chegar à casa varados de fome, até porque os moços e as crianças têm mesmo muito apetite, ao contrário de gente já mais velha, como ela mesma, a quem basta um bom prato de sopa e um assado à hora da ceia.
D. Antônia contava, naquele ano de 1835, a sua quadragésima nona primavera, era apenas três anos mais velha do que seu irmão Bento e, como ele, tinha também aquela consistência firme de carnes, os mes¬mos olhos negros, espertos e doces, a mesma voz calculada, e idêntica capacidade de rejuvenescimento. Era uma mulher alta e magra, ainda de rosto liso, cabelos negros sempre presos no mesmo coque de três grampos, vestia-se sempre em tons discretos, mas seus vestidos eram campeiros: nunca fora afeita das cidades, vivendo sempre em sua es-tância, com seus cavalos, seus pomares e seus pássaros, isso desde que ficara viúva do casamento com Joaquim Ferreira, moço a quem ama¬ra com todo o seu espírito, advogado, e que morrera numa carreira de cavalos, tendo caído da montaria e, com a espinha partida, vindo a fa-lecer assim, na mesma hora. D. Antônia tinha então vinte e sete anos e nenhum filho, e assim continuara a sua vida inteirinha. De Pelotas, onde fora viver após o casamento, voltara para a Estância do Brejo e lá fica¬ra gastando seus anos; dos filhos que não parira, quase não sentia qual¬quer falta: tinha para mais de doze sobrinhos e com isso se bastava muito bem.
Enquanto a pequena charrete vencia as milhas necessárias, sob o agradável sol de setembro, D. Antônia media uma certa felicidade em seu peito; vinham as duas irmãs e a cunhada, e vinham as sobrinhas moças e os pequenos, teria boas companhias por uma temporada, ou pelo tempo que durasse a guerra. Guerra, essa palavra teve a força de causar-lhe um longo arrepio. O irmão começava uma guerra contra o Império, contra a tirania do Império, contra os altos preços do charque e o imposto do sal. Bento começava uma guerra contra um rei, e isso a enchia de aflição e de orgulho. Recebera a sua carta ainda naquela al-vorada, e lera-a enquanto sorvia o seu mate. A erva e as palavras do irmão tinham lhe deixado um gosto amargo e um calor morno no cor¬po. E então, enquanto mandava servir pão e mate para o portador do bilhete, um gaúcho calado e de longos bigodes que a fitara com o res-peito devido à irmã de um coronel, pegara da sua pena e escrevera: "Que Deus e a Liberdade lhe acompanhem, meu irmão. Pode deixar Caetana e as outras sob os meus cuidados e os de Ana. A Estância do Brejo e os meus peões são seus quando precisar. Sua Antônia." De¬pois disso, recobrara alguma paz. Bento nascera para as guerras. E ela, como as outras, sabia esperar com paciência. Bento tinha estado nas guerras quase a maior parte da sua vida, e sempre voltara. Não era um homem feito para morrer, como o seu pobre Joaquim.
D. Rosa era uma cabocla de idade indefinida, carnes enxutas e sorriso cordial. Trabalhava para os Gonçalves da Silva desde que se vira em pé, assim como sua mãe, e ali naquelas terras à beira do Camaquã pas¬sara os últimos trinta anos de sua vida, sovando o pão, mexendo a tina de marmelada, a tina de pessegada, o doce de abóbora, zelando pela casa da estância, pelos jardins, pelos bichos do quintal, pelos empre¬gados e pelos negros de dentro. Era ela quem cuidava da cozinha e dos quartos, era ela quem conhecia os gostos de D. Ana e dos seus meninos, os jeitos de servir o mate para o senhor Paulo, o tempero das comidas que o senhor Bento mais apreciava quando vinha ali a cami¬nho das suas cavalhadas ou para rever a família da irmã.
Quando D. Antônia surgiu, ainda muito cedo, com a notícia da chegada dos outros, D. Rosa não se inquietou: estava tudo arreglado, os quartos todos limpos; os cinco quartos destinados às visitas tinham os lençóis alvos ainda cheirando a alfazema, as cortinas abertas para deixar o sol da primavera entrar nas peças ainda ressentidas do úmido inverno, as jarras com água fresca e limpa repousavam sobre cada cô-moda. O quarto da patroa também estava ao seu gosto, pois D. Rosa tinha sempre em mente que o dono da casa podia aparecer quando bem lhe aprouvesse, e D. Ana tinha muita satisfação na primavera da es-tância, no perfume dos jasmins e das madressilvas, no canto dos curiangos que rasgava o céu das noites estreladas.
— São treze que chegam, contando com as três negras, D. Rosa. Me arrume acomodação para elas também, no quarto grande do quintal, junto com as outras da casa. — Antônia depois pensou um pouco, se não faltava ninguém, recordando mentalmente a lista que Bento lhe fizera com toda a sua gentileza, para que ela não fosse pega em despre-paro, e disse: — Vem com eles também o Terêncio, mas esse não sei se fica ou se volta para as terras do Bento. Ah, e tem os pequenos, é pre¬ciso um quarto para os dois meninos de Caetana, e outro para as meni¬nas pequenas. Acho que a negra Xica fica com elas à noite, veja bem isso.
D. Rosa assentiu, tranqüilamente. Com um seu chamado, Viriata e Beata apareceram, vindas da cozinha. D. Rosa deu-lhes algumas or¬dens: arrumassem os quartos dos pequenos, pusessem os dois berços que ficavam lá na despensa num outro quarto, para as meninas de D. Caetana. E mandassem Zé Pedra cortar mais lenha, as noites ainda eram bem frias por ali e precisavam aquecer a casa toda.
D. Antônia achou tudo por resolvido, depois disse:
— Vou lá para a varanda da frente. Não demora elas chegam, e quero recebê-las. Mande alguém me levar um mate.
Saiu em passos rápidos, adentrando o corredor da cozinha. Conhe¬cia bem aquela casa, desde meninota, tudo ali era um pouco seu tam¬bém. D. Rosa saiu para dar jeito nos seus afazeres, não sem antes avisar Viriata que levasse o mate para a patroa. E que cozinhasse mais feijão, mais arroz, mais aipim. Tinham também de pôr outro assado no forno.
*
Passava do meio-dia quando a pequena procissão de charretes apare¬ceu na porteira da estância. O dia estava claro e sem nuvens, e o céu de um azul muito puro parecia alargar ainda mais a paisagem sem fim. Soprava uma brisa fresca que vinha dos lados do rio. D. Antônia, da sua cadeira na varanda, reconheceu o vulto de Terêncio a cavalo, de-certo que Bento o mandara para dar segurança às mulheres. Não que o pampa estivesse convulso, pois tudo ainda não passava de um suspi¬ro, um espasmo, um assunto para as rodas de chimarrão, para as co¬madres sussurrarem de olhos arregalados; de Porto Alegre, naquela manhã de vinte de setembro, nenhuma notícia ainda tinha chegado, fosse ela boa ou ruim. Mas Terêncio, forte e impávido, carranca prote¬gida pela sombra do chapéu de barbicacho, as esporas de prata — presente de Bento — rebrilhando ao sol da primavera, vinha guiando o pequeno comboio, e foi ele mesmo quem pulou do cavalo para abrir a porteira, antes que um dos peões da casa tivesse tempo de fazê-lo.
D. Antônia ficou esperando sem erguer-se: ainda tinham um bom caminho para chegar à frente da casa, mas já se sentia feliz por rever as irmãs e a cunhada, as sobrinhas e os sobrinhos. Dos moços, nem sinal. Decerto tinham ido com os outros para a cidade, o sangue aven¬tureiro corria em suas veias, era impossível que ficassem em casa en¬quanto tanto acontecia sob suas barbas ainda tão discretas. Os filhos de Caetana, os três mais velhos, esses andavam para o Rio de Janeiro, lá para perto do Império. D. Antônia tinha plena certeza de que se a guerra fosse mesmo coisa certa, Bento, Joaquim e Caetano haviam de voltar para o Rio Grande.
Viu a primeira charrete subindo a pequena estradinha de terra, conduzida por um negro: lá estavam D. Ana, vestida de azul, muito ereta, e Caetana, com uma das filhas no colo — devia ser Maria Angé-lica, a maiorzinha —, Caetana, tão bela, mesmo de longe, com seus negros cabelos a brilharem sob o sol. Vinha com elas a negra Xica, tra-zendo nos braços Ana Joaquina, um volume rosado, de bracinhos curtos e roliços. Sorriu, acenando-lhes. A mão enluvada de D. Ana ergueu-se no ar, alegre e inquieta. Caetana acenou com mais resguar¬do. D. Antônia a conhecia muito bem; numa hora dessas, com toda a certeza, devia estar pensando em Bento, no peito de Bento, desafiando as espadas, as carabinas e as adagas, conduzindo seus homens e seus sonhos. Sim, Caetana devia estar abatida, e ainda tinha os filhos pe-quenos a lhe darem as preocupações rotineiras. Mas amar Bento era conviver com essa sina, e Caetana sempre soubera disso.
A segunda charrete trazia Maria Manuela e sua filha Manuela, que tanto crescera desde o outono, e que já estava uma moça viçosa e mui¬to bonita, Milú, a criada de D. Ana, e os dois filhos de Caetana, Leão e Marco Antônio, que já vinham apontando isto e aquilo, naquela ân¬sia louca que os meninos têm de sair a correr e subir nas árvores. D. Antônia pôde ver que Maria Manuela tentava acalmá-los sem muito êxito, enquanto a negra Milú apenas ria seu riso de dentes muito bran-cos, o rosto retinto de preto contrastando com o lenço amarelo que lhe cingia os cabelos de carapinha. Maria Manuela reconheceu-a e ace¬nou, D. Antônia ergueu alto o braço e retribuiu longamente o aceno da irmã mais moça.
Por fim, vinham as outras sobrinhas, numa conversação alheia a tudo. D. Antônia recordou a sua própria mocidade ao vê-las, pássaras alegres, pulando e rindo na sua charrete. Perpétua, Rosário e Mariana, as três primas, vinham entretidas em falastrinas que duravam já desde a saída de Pelotas, enquanto um negrinho miúdo, impávido, guiava o par de cavalos rumo à casa. D. Antônia sabia que Manuela, a mais moça, preferira vir com a mãe no outro carro, mergulhada em seus silêncios. D. Antônia tinha muitas simpatias pela bonita Manuela, pois também fora moça de longos pensamentos, calada e misteriosa. A filha de Ben¬to e Caetana, Perpétua, que herdara o nome da avó paterna, já era fei¬ta de diverso barro, como as outras filhas de Maria Manuela: estavam alheias a tudo, nem tinham acenado para a tia na varanda, a conversa devia estar boa e decerto falavam de bailes e moços. Apenas Zefina, a criada de Caetana, é que vinha calada ao lado das sinhazinhas, enco¬lhida num canto do carro, olhando para tudo com uns olhos ávidos.
A um sinal de Terêncio, as três charretes pararam em frente à grande casa branca de janelas azuis com cortinas de veludo cinzento. D. Antônia desceu os cinco degraus da varanda e foi receber as irmãs e a cunhada. Ladeando a casa, duas carroças carregadas de malas e paco¬tes foram para os fundos do terreno. Terêncio seguiu-as, para ordenar o descarrego das malas das patroas.
— Sejam bem-vindas — disse D. Antônia, e tratou de abraçar D. Ana. — Está mais viçosa, irmã — falou, sorrindo. — Espero que a sua casa esteja a gosto. Eu mesma vim hoje cedo, dar ordens à D. Rosa. Os quartos estão todos prontos, e se não se atrasaram lá na cozinha, a mesa deve estar posta.
D. Ana sorriu um riso amplo e alegre, e seus olhinhos miúdos e escuros cintilaram de satisfação. Apertou com força a irmã, sentindo-lhe o volume das costelas sob o pano claro do vestido.
— Tive saudades de vosmecê, Antônia. Nem no inverno mais ri-goroso vosmecê se afasta daqui, hein, cabreira?
— Minha alma só tem sossego nesta terra, irmã. Devia já saber disso.
D. Ana cortou o ar com a mão enluvada:
— Não tem problema, Antônia. Agora estamos aqui. E, quem sabe, talvez fiquemos por um bom tempo... — suspirou e, por um segundo, seus olhos ficaram nebulosos, mas ela voltou logo a sorrir. — Vamos a ver, isto é com Deus e com os nossos homens... Depois se fala na guer¬ra, se é que teremos mesmo uma guerra pela frente. Por hora, há mui¬to o que fazer. É preciso acomodar essa gente toda. — E subindo os degraus da varanda, foi chamando: — D. Rosa! D. Rosa, chegamos e trouxemos crianças famintas! D. Rosa, fez um vaso com jasmins para o meu quarto?
A voz enérgica perdeu-se dentro da casa. D. Antônia abraçou Caetana e deu-lhe as boas-vindas. Caetana segurava pela mão a filha de cinco anos.
— Está bonita, Maria Angélica! Logo será moça, hein? Crescem como o capim, essas crianças... — D. Antônia acarinhou os cabelos dourados da menina, que sorria. — E vosmecê, como vai, cunhada?
Caetana abriu um sorriso doce e algo cansado. Seus olhos verdes cintilavam uma luz que dava mágica ao seu rosto.
— Estoy mui bien, Antônia. E muito bem ficarei até que me chegue uma carta do Bento... Vosmecê sabe, quando elas chegam, meio que morro, antecipando o conteúdo, quando elas tardam, é o medo... Mas sempre foi assim, desde que me casei. Até já estou acostumada com essas campanhas todas. Desta vez, ao menos, estamos juntas, cunhada.
— Teremos bons dias — disse a outra.
— De cierto, querida Antônia, de cierto.
Caetana tornou a pegar na mão da filha e foi ver como tinham ido de viagem os meninos. Movia-se entre todos com uma leveza de garça, alta e ereta como uma rainha. Caetana era, sem dúvida, uma das mais belas mulheres do Rio Grande. Nos bailes, nenhuma das moças con-seguia fazer melhor figura que ela, quando valsava pelo salão guiada por Bento Gonçalves.
D. Antônia abraçou por último a Maria Manuela, que lhe falou da amena viagem.
— A estrada esteve deserta por quase todo o tempo. Parece que o Rio Grande está em compasso de espera... Meu marido foi com Bento, faz dois dias... Só de pensar — baixou a voz —, estremeço. Se vier a guerra, compadre lutará contra compadre — e fez o sinal-da-cruz.
— Fique tranqüila, Maria. Vosmecê conhece: eles sabem bem o que fazem. Deixemos a eles esses assuntos...
— Está certa, irmã... No momento, tenho mesmo é vontade de comer alguma coisa e beber um suco fresco. A poeira me entrou pela garganta como o diabo.
Subiram juntas as escadas da varanda, onde uma criada já servia de beber para as moças e os meninos. D. Antônia gastou algum tempo com os filhos de Bento, mas logo eles entraram para explorar a casa numa cor¬reria desabalada. As quatro sobrinhas vieram então abraçá-la. D. Antônia disse a Perpétua que ela estava uma moça bonita, parecida com o pai.
— Está já para casar, Perpétua. É preciso que le achemos um bom marido, menina.
Perpétua enrubesceu um tanto e foi logo respondendo que em tempo de guerra era tarefa ingrata achar um pretendente. Tinha a pele acobreada da mãe, mas os olhos eram os mesmos de Bento, embora o olhar fosse mais dolente, e seus cabelos eram de um castanho muito escuro.
— Estão todos se juntando ao meu pai e aos outros, tia. Enquanto durar esta guerra, ficarei solteira por certo.
Não imaginava ela o que o futuro estava reservando à província, nem nenhuma das mulheres o imaginava naquele princípio manso de primavera nos pampas. Perpétua Garcia Gonçalves da Silva tinha es-peranças de que o verão já lhes trouxesse a paz. A paz e a vitória. E os bailes elegantes onde desfilaria os vestidos vindos de Buenos Aires e os sapatos de veludo que mandara buscar na Corte. D. Antônia tomou-lhe a mão:
— O tempo às vezes pode se arrastar muito nestas paragens, mi-nha filha... Mas tenha calma, se o seu marido está para vir, não há de ser a guerra que vai tirá-lo do seu caminho. Essas coisas estão progra-madas todas. Confie em mim, que eu sei desses assuntos de destino, pois aprendi da forma mais dura: vivendo.
Perpétua sorriu e deu um leve abraço na tia a quem sempre recor-dara como viúva. Parecia muito remoto que um dia D. Antônia, tão recatada e solitária, houvesse tido um homem ao seu lado na cama.
Rosário achegou-se, era a sua vez de abraçar D. Antônia. Pediu desculpas pela poeira. Estava querendo um longo banho morno. Ro¬sário era a mais citadina de todas: quando a mãe fora lhe dizer que deixariam Pelotas para ficar uns tempos na Estância da Barra, tranca¬ra-se no quarto por uma tarde inteira e chorara amargas lágrimas. Queria conhecer Paris, Buenos Aires, o Rio de Janeiro, queria os bai¬les da Corte, as danças e a vida alegre que as damas deviam levar, e agora, enquanto os homens pelejavam por sabe-se lá que sonhos, ela tinha de retirar-se ao campo, ao silencioso e infinito campo onde tudo parecia eternizar-se junto com o canto dos quero-queros. Rosário de Paula Ferreira não tinha amores às paragens do pampa, e agora estava ali, com as outras, destinada a um exílio cujo fim desconhecia.
— Antes do almoço, se vosmecê quiser, uma das negras prepara o seu banho. Agora me dê um abraço, que faz muitos meses que não lê vejo, menina. E vosmecê sabe que a poeira a mim nunca fez medo. — D. Antônia cercou-lhe a cintura fina com os braços fortes de montar e sorriu. Rosário era de consistência frágil, pele clara, olhos azuis, cabe¬los claros e muito lisos. Tinha umas mãos delicadas de segurar cristais. Imaginou-a sobre uma sela e sorriu um riso alegre: Rosário tinhas ares de salão, isso sim. — Agora vá ao seu banho — e empurrou a moça para dentro da casa.
Mariana beijou a tia no rosto, e alegria da chegada dava um brilho aos seus olhos castanhos.
— Tia, quanta saudade! Fiquei feliz que vínhamos estar com vosmecê.
E logo, no mesmo alvoroço, já entrava na casa, buscando Perpé¬tua. Era uma moça de estatura meã, pele morena e rosto forte, cuja graça maior estava nos oblíquos olhos castanhos de longas pestanas negras. Olhos de índia, dizia a mãe. E era alvoroçada como uma criança.
Manuela, a mais moça, abraçou a tia com sincero afeto. Estava um tanto descabelada, pois tirara o chapéu a meio caminho para sentir a brisa nos cabelos, e seu rosto bem-feito, os olhos verdes muito claros, tudo tinha um viço de coisa nova e misteriosa, e a boca cheia abriu-se num sorriso. Usava um vestido amarelo, com peito de rendas, que lhe acentuava a graça.
— Tia Antônia — disse somente, e suas mãos mornas apertaram as palmas ossudas de Antônia.
— Vosmecê está uma moça, Manuela. A última vez que le vi, no verão passado, ainda era uma menina.
— O tempo passa, tia — falou Manuela, por falar. E aspirou o ar cheio de jasmins que pairava sobre a varanda e o jardim. — E bom estar aqui.
D. Antônia sorriu para a sobrinha preferida. Mandou-a entrar, então. Fosse ter com as outras, tirar a poeira, preparar-se para o almo¬ço; afinal, estavam todos famintos.
— Até eu, menina, que hoje acordei ao raiar do dia e quase nada comi. Não vejo a hora de ver as travessas na mesa!
Ficou espiando Manuela adentrar a casa, pisando leve no chão de madeira, e ir seguindo pelo corredor já conhecido, em direção ao quarto que uma negra lhe indicara. E sentiu um leve arrepio lamber suas car¬nes, ao ver a sobrinha assim, flanando pela casa feito uma fada, mas creditou-o à brisa da primavera, que, naquelas paragens dos pampas, ainda enregelava.
Restava sozinha na varanda. As mulheres todas e as criadas tinham ido tratar da chegada, abrir as malas, preparar-se para o almoço. D. Antônia sorriu: a casa estava cheia como nas férias, e uma alegria nova e buliçosa ardia em tudo. "Por quanto tempo?", não pôde deixar de se perguntar. "Por quanto tempo, meu Deus?"
*
D. Ana sentou na cama e acarinhou o colchão de molas. No lado es¬querdo, podia apalpar, mais com a alma do que com os dedos, as mar-cas do corpo do seu Paulo. Deitou-se por um instante, mas encontrou a cama vazia do calor e do cheiro do marido, cheiro forte, de tabaco com limão. Em tudo, pairava um aroma de limpeza que doeu em seu peito. Paulo não era mais um moço, embora tivesse a compleição ro¬busta dos cavaleiros, alto, espáduas largas, a barba espessa, a voz for¬te, as mãos calejadas e firmes de segurar o laço. Já tinha lá seus cinqüenta anos, embora os cabelos estivessem negros como na juven¬tude e ele ainda sonhasse os mesmos sonhos de quem tem a vida pela frente. Gostava do imperador, da Corte, da rotina calma alternada pelas invernadas que fazia questão de comandar, mas agora estava lá, assim como Bento, desafiando o Regente e tudo o que ele significava, com a arma em punho contra tudo que sempre conhecera. Nos últimos tem¬pos, a coisa andava brava para os estancieiros, e D. Ana via nos olhos do esposo uma crescente angústia, que se traduzia nuns gestos secos, numas noites sem sono, quando sentia-o rolar ao seu lado, na cama, tentando acalmar os pensamentos. Quando ele a chamara ao escritó¬rio, ainda na semana passada, e contara que marchariam sob o coman¬do de Bento para tomar Porto Alegre, D. Ana já sabia de tudo, porque aprendera desde menina a pescar nos silêncios as respostas para as suas dúvidas. Olhando o marido pitar seu palheiro, o rosto fingindo uma calma que não sentia de todo, os olhos verdes tomados de uma febre misteriosa, D. Ana quisera apenas saber:
— E José e Pedro?
O marido mantivera firme o olhar.
— Já falei com eles. Disseram que vão conosco. — E antevendo o medo nos olhos de Ana, acrescentara com voz decidida: — São ho¬mens, são rio-grandenses, serão donos destas terras, têm o direito de ir e de lutar por aquilo em que acreditam.
E agora D. Ana estava ali. Seus três homens, tudo de seu, estavam talvez nos arredores de Porto Alegre, na Azenha, conspirando, afian¬do as adagas, limpando as baionetas, comendo o churrasco assado nas fogueiras, aspirando aquele cheiro de terra, de cavalos e de ansiedade que devia pairar em todos os acampamentos de soldados.
D. Ana acarinhou outra vez o colchão, sob a colcha de matelassê branca. Um sol dourado entrava pela janela de cortinas abertas, um sol tênue e aconchegante. Precisava se ajeitar para o almoço; afinal de contas, não era causo de tristezas, não ainda. Teriam pela frente muitos dias de angústia, à espera de uma notícia, de boa sorte ou de malogro, e então, só então, se fosse o caso, viria a tristeza estar com elas. A tristeza serena que era com¬panheira constante das mulheres do pampa. Sim, pois não havia uma mulher que não tivesse passado pela espera de uma guerra, que não tives¬se rezado uma novena pelo marido, acendido uma vela pelo filho ou pelo pai. Sua mãe conhecera a angústia de espera, e antes dela sua avó e sua bisavó... Todas as mulheres na estância estavam na mesma situação, e ela, Ana Joaquina da Silva Santos, era a dona da casa. Levantou, abriu o ar¬mário de madeira escura e tirou dali um vestido. Foi ao toucador e, pe¬gando da jarra, derramou um tanto de água na bacia de louça. Lavou-se rapidamente. Milú, como uma sombra, adentrou o quarto trazendo uma toalha branca. Secou a patroa com gestos delicados e ágeis, ajudou-a a trocar as saias, vestir a roupa limpa e refazer a trança do cabelo. Milú ti¬nha uns dedos longos e dourados que corriam pelas melenas de D. Ana como asas, quase voando. A trança foi presa no coque perfeito.
— Está ótimo, Milú — D. Ana presenteou a criada com um sorri-so. — Avise na cozinha que já estou indo.
Milú tinha uma voz suave, condizente com seu corpo miúdo de negrinha adolescente. Disse um "está bem, senhora", e saiu ventando do quarto, mas sem bater a porta, coisa que D. Ana execrava.
Sentadas em torno da mesa, eram dez pessoas. As duas meninas pe¬quenas de Caetana já tinham ganhado a sopa e o leite, e agora dormiam um soninho exausto de viagem sob o olhar atento da negra Xica. O al¬moço teve ares festivos: a carne assada, a galinha com molho, o feijão, o arroz, o purê e o aipim cozido na manteiga espalhavam-se em várias tra¬vessas sobre a mesa recoberta com a toalha bordada a mão por D. Per¬pétua, muitos anos atrás.
Um pequeno e inquieto silêncio se fez apenas quando, antes da refeição, como era o costume na casa, D. Ana juntou as mãos em ora¬ção e pediu "pelos nossos maridos e filhos, que Deus os guie com a Sua própria mão, e que logo retornem, vitoriosos, a casa". A voz das mulheres respondeu em coro um amém; Leão e Marco Antônio esta¬vam mais ocupados em mastigar.
Caetana Joana Francisca Garcia Gonçalves da Silva fez força para conter o leve tremor que assaltou suas carnes, mas foi em vão. Baixou os olhos para a mesa, e em suas retinas dançava ainda o vulto de seu adorado Bento, montado no alazão, usando o dólmã, espada na cintu¬ra, as botas negras que cutucavam o cavalo com as esporas de prata. E reviu ainda o seu adeus, naquela alvorada em que partira de casa com Onofre e os outros, para tomar a Capital. Sob a luz tênue do amanhe¬cer, pareciam figuras de mágica, vultos dourados pelos primeiros mati¬zes do dia. E fora assim que o guardara no último instante, as costas eretas, o cavalo troteando, uma mancha negra que ia diminuindo pou¬co a pouco. Ficara na varanda, enrolada no xale de lã, com o coração acelerado querendo escapar-lhe pela boca. Dentro de casa, a filha pe¬quena chorava.
D. Ana, à cabeceira da mesa, começou a servir-se, um pouco de tudo, porque nada melhor do que um estômago cheio para acalmar as ânsias da alma, e uma sesta, isso sim, na sua cama, sentindo entrar pela janela o perfume de jasmins e a brisa fresca do pampa. Notou que, ao seu lado, Caetana era a única de prato vazio, vazio como seus olhos verdes que vagavam perdidos entre uma travessa e outra, como que a contemplar velhos fantasmas.
— Vosmecê não tem fome, cunhada?
A voz morna arrancou Caetana de seu torpor, e ela sorriu um riso triste.
— Desculpe, Ana. É que não pude deixar de pensar em Bento. E em onde anda ele a uma hora dessas...
D. Ana abriu um sorriso, tinha ainda muito alvos os dentes. Esten-deu o braço e tocou na mão da cunhada. Seus olhos eram um lago de paz e de conforto.
— Esteja calma, Caetana. Numa hora dessas, se bem imagino, Ben¬to e os outros devem estar se refestelando com um bom churrasco. Vosmecê conhece o apetite que têm os valentes... Comem um boi pela perna.
As moças riram da graça da tia. D. Antônia, sentada à outra cabe-ceira, ainda disse:
— Se vão tomar Porto Alegre, seja esta noite ou amanhã, decerto que estarão com o estômago cheio. E se eles comem, não há por que deixarmos nós de nos regalar. Afinal, já dizia minha mãe: saco vazio não pára em pé.
Caetana sorriu um riso leve e pôs também alguma comida em seu prato, comida esta que venceu aos bocadinhos, embora estivesse de gosto bom e muito bem temperada, porque ainda Bento, seu Bento, espaçoso e forte como um touro, ocupava cada palmo de seu espírito. Mas o almoço transcorreu com leveza, e as moças trataram de falar de coisas alegres, pois para elas a temporada na estância era nada mais do que férias, logo deveriam voltar para Pelotas, para os chás domingueiros com as amigas de bordado, e para os bailes. Isso mesmo, para os bai¬les, que elas tanto desejavam.
— A cor desta primavera é o amarelo — disse Rosário. — Pena que para mim não caia bem, pois sou toda clara, de pele e de cabelos. Vestida de amarelo, ficarei igual a uma gema de ovo.
E D. Ana riu com vontade, deitando seus olhos castanhos na¬quela mocinha citadina, de pulsos finos e olhos azuis como o céu que brilhava lá fora. Considerou que Rosário era frágil, não herda¬ra a força dos Gonçalves da Silva, talvez ainda sofresse muito nessa vida campeira. No Rio Grande, os jogos da Corte eram brincadei¬ras dos tempos de paz, e a fronteira quase nunca tinha paz, quase nunca... Ela recordou sua velha mãe e as muitas madrugadas em que a vira pedalando a máquina de costura para espantar o medo da cama vazia. Nunca a vira chorar, nem na paz nem na guerra, não a vira chorar nem quando enterrara os filhos, um pequeno, o outro já moço, ferido de bala numa batalha que nem um nome dei¬xara para lembrança. D. Perpétua da Costa Meirelles não entendia de modas, vestia-se sempre de cinzento ou azul. Branco, usara ape¬nas no dia do casamento. Morrera calada, de velhice, naquela casa mesmo em que se encontravam, quando viera visitar a filha num verão, havia tempos.
D. Ana fitou Rosário com o canto dos olhos; havia nela alguma coisa dos traços da avó, a testa alta, a boca delicada, mas Rosário tinha uns olhos úmidos, afeitos ao pranto, e os olhos de D. Perpétua foram sem¬pre secos, até na hora da morte.
— A moda é nada mais do que um passatempo, Rosário — disse D. Ana, sorrindo, ao cruzar os talheres. — O azul, o branco, o verde, o amarelo e o cinzento sempre existiram e sempre foram boas cores para uma mulher de bem vestir — e quando acabou de falar, vendo alguma mágoa no rosto frívolo da sobrinha, pareceu-lhe que o vulto da mãe a espiava de um canto da sala, perto da cortina, e que lhe sorria o mesmo riso comedido de toda a sua vida.
Comeram a sobremesa num silêncio cansado da viagem. Apenas Maria Manuela e D. Antônia prosearam um tanto sobre a rudeza do inverno passado fazia pouco, sobre flores, coisa da qual ambas enten-diam deveras. D. Antônia despediu-se no final da refeição: precisava voltar para a Estância do Brejo, cuidar dos afazeres da casa, da venda de uma ponta de gado.
— Mas amanhã venho estar com vosmecês para mais uma prosa — disse ela, e saiu em busca do cocheiro, que devia estar de assunto com os peões da casa.
Logo depois, cada uma das mulheres recolheu-se ao seu quarto. Manuela e Mariana dividiam a última peça do corredor, que dava vis¬tas para a figueira do quintal; Perpétua e a prima Rosário ganharam o quarto ao lado do pequeno escritório que também servia de biblioteca — o senhor Paulo tinha muitos livros em espanhol e francês, línguas da qual tinha um bom conhecimento.
— Lerei um livro em francês — disse Rosário à prima, antes de fechar os olhos, já de combinação, deitada na cama. — Sei um pouco do idioma, pois tive algumas aulas com a senhorita Olívia, no ano pas¬sado. O resto, adivinharei. É um bom jeito de passar o tempo por aqui...
Perpétua nem chegou a responder: antes de Rosário acabar de falar, já ressonava. Talvez sonhasse com um noivo de olhos azuis, talvez.
Em seu quarto, Caetana olhava o teto, em vão, o sono não lhe vinha, apesar do cansaço que sentia pesar nos seus membros. Ouviu um leve arrastar de passos no corredor, decerto as criadas botavam a sala em ordem outra vez. No quarto ao lado, pelo silêncio que lhe chegava, as filhas dormiam calmamente.
Ergueu-se da cama após alguns minutos de inquietação. Era uma alcova simples: a cama larga, de madeira escura, um rosário preso à parede, sobre a cabeceira, janelas altas com cortinas de veludo azul, um pequeno toucador com as coisas de higiene, a jarra de louça bran¬ca e a bacia com florezinhas azuis, um espelho de cristal com bela moldura de prata escalavrada. Um armário pesado, de duas portas, ficava assentado em frente à cama. Ali, Zefina já tinha disposto os seus vestidos, xales e chapéus. No outro canto do quarto, perto da janela, uma pequena mesinha segurava um maço de folhas, pena de metal e tinteiro.
Caetana puxou a cadeira e sentou. Tomou da pena, mergulhando-a no líquido negro do tinteiro de cristal, e pôs-se a escrever numa faina louca que deixava irregular a sua letra sempre delicada.
"Amado esposo,
Estamos aqui na estância da sua irmã, Ana, todas as mulheres reuni¬das para esta espera que, rezo, seja breve. Ainda não tive notícias suas, e sei o quanto é cedo para isto; sei também que vosmecê se preocupa comigo e com os nossos filhos, fazendo o possível para que tudo nos seja leve. Mas eu sofro, Bento. E sofro por vosmecê. A cada instante, é somente em vosmecê que penso, se está bem, se terá êxito, e se voltará para a sua casa e para os meus braços. Sem usted, não sei viver, e até mesmo um simples dia se torna custoso como um inverno... Mas espero, e rezo.
Desculpe esta sua esposa tão fraca, que, de tanto viver esta angústia, já desaprendeu a suportá-la. A espera é um exercício duro e lento, meu querido, que só os fortes logram vencer. Vencê-la-ei, por usted. Nunca ignorei a sua fibra, nem a força dos seus sonhos, e luto para estar eu à altura da sua companhia e da grandeza dos seus atos.
Quando um seu vier dar aqui, com notícias da sua pessoa e das suas tropas, creio estar trêmula demais para responder-lhe a contento, e é por isso que já me desafogo nestas linhas ansiosas... Saiba que seus filhos es¬tão bem, e que Leão perguntou já muitas vezes do seu paradeiro, queria ele estar com usted, lutar ao seu lado. É um menino que já nasceu com gosto pelas batalhas, anda sempre com a espada que usted talhou para ele enfiada na cinta da calçola, então desde já vou preparando minha alma para sofrer também por ele quando for o tempo. Maria Angélica disse-me que sonhou com usted a tarde, e seus olhinhos verdes brilharam de con-tentamento ao recordar o pai. A pequena Ana Joaquina, Marco Antônio e Perpétua le mandam seus carinhos. Dos mais velhos, ainda não tive notí¬cias, mas decerto estão a salvo na Corte. E sua irmã Antônia veio nos re¬ceber com a doçura de sempre. Há algo na serena força dela que me remete a usted e que me conforta.
Por tudo isto, pode, meu caro Bento, acalmar seu coração no que tan- ge a nós, sua família. Saiba que tenho pedido à Virgem por usted, fervo¬rosamente, e que em cada gesto meu há uma palavra de oração sussurra¬da. Que a glória le acompanhe, esposo, onde quer que vosmecê pise. Esse desejo não é apenas meu, mas das suas parentas todas. Aqui na Barra, rezamos muito por vosmecê e pelos nossos.
Que Deus cavalgue ao seu lado,
Com todo o amor,
Sua Caetana
Estância da Barra, 20 de setembro de 1835"
Dobrou com cuidado e lacrou a carta com cera. Depois, guardou-a numa gavetinha, com o zelo de quem guarda no cofre uma jóia de muita estima.
Sem mais o que fazer, voltou para o leito; deitando-se, fechou os olhos e rezou para dormir um tantinho que fosse. Suas costas estavam doridas da viagem, e ela tinha ganas de chorar. Lá fora, começou a soprar um leve vento de primavera. A tardinha, rezaria no oratório. Só a Virgem poderia sossegar-lhe a alma.